segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

'Her': o filme de uma geração

O cineasta americano Spike Jonze faz parte do grupo que nasceu para o audiovisual fazendo videoclipe. Um grupo de então garotos, como Roman Coppola, Michel Gondry, até David Fincher, por que não?, que produzia pérolas para bandas e artistas do universo cool, tais quais Sonic Youth, Weezer, Daft Punk, Fat Boy Slim... Quem não se lembra da dancinha de "Praise you"? Depois, ele e Gondry se associaram a Charlie Kaufman e adentraram o mundo da tela grande. Jonze com "Quero ser John Malkovich" e depois "Adaptação", Gondry com "Human nature" e a obra-prima "Brilho eterno de uma mente sem lembranças".

Em seguida, Kaufman enlouqueceu - ver "Sinédoque, Nova York" - e Gondry e Jonze tiveram que seguir seus próprios caminhos. Gondry filmou seus próprios roteiros [loucos] e Jonze adaptou um livro infantil: "Onde vivem os monstros". Com "Her", última obra de Jonze, finalmente temos uma peça com roteiro e direção do moço que quando nasceu recebeu dos pais a alcunha de Adam Spiegel. Valeu esperar. É, também, uma obra-prima, comparável a "Brilho eterno...".

'Sinédoque...' é protagonizado por um atormentado Philip Seymour Hoffman

Antes de entrar no filme em si, um pouco de fofoca especulativa, que pode contextualizar a questão. Para isso, temos que voltar até 2003, e a um filme de uma cineasta que tinha ligação com o grupo dos videoclipes, mas apenas de maneira indireta: "Lost in translation", de Sofia Coppola. Como se vê, ela é irmã de Roman, filha de Francis Ford, e de 1999 até 2003, foi mulher de Jonze.

Para quem não se lembra de detalhes do filme com Bill Murray e - por favor, atentem para isso - Scarlett Johansson -, é a história de uma mulher que vai para Tóquio acompanhar o marido, e fica isolada no hotel, enquanto o cara, um fotógrafo muito requisitado, faz e acontece, sem dar muita atenção para ela. Ela, completamente isolada, conhece o personagem de Murray, um cara de meia idade que também está entediado, e que passa um tempo com ela, numa relação que fica na fronteira entre o paternal, o fraternal e o amoroso, no sentido sexual do termo.


Não duvido que Charlotte, a personagem de Scarlett, seja uma projeção do estado de espírito de Sofia, naquela época. E o fotógrafo, vivido por Giovanni Ribisi, representaria como Sofia via seu então marido. Bob Harris [Murray] seria a necessidade de proteção, de companhia masculina, no sentido antigo, o da segurança, de alguém para ficar com ela nos momentos de solidão. Não deve ser coincidência o filme sair exatamente no ano em que Sofia e Spike se separaram.

Suspeito que "Her" é, finalmente, a resposta [à altura] de Jonze para Sofia. Para ser direto, simples e com spoilers: é a história de Theodore Twombly, um sensível ghost-writer de cartas pessoais, logo após se separar da mulher, Catherine, por quem ele ainda tem um imenso carinho. Por questões que ele não sabe explicar, ele foi se afastando, se afastando, até que não tinham mais conexão. Theodore está sofrendo por essa separação, e não consegue se perdoar pela sua negligência. Está numa deprê braba até que conhece Samantha.

Samantha não é uma pessoa, mas um sistema operacional superdesenvolvido, que se adapta e evolui à medida que as necessidades se apresentam. No início da relação entre os dois, ela começa tentando animar Theodore, fazendo com que ele saia da cama, comece a viver novamente, encontre novas pessoas, se divirta, até que, após um encontro frustrado, os dois se envolvem. Amorosa e sexualmente.


Com uma cena em blecaute, apenas com as vozes, Jonze demonstra que o sexo reside mais na cabeça do que em qualquer outro órgão humano. Os dois vão narrando suas imaginações, num caminho rumo a um clímax que ambos vão atingir juntos. Samantha é capaz de chegar ao orgasmo.

Um detalhe que merece um parágrafo só para ele: Samantha é dublada por ninguém menos que Scarlett Johansonn. Seria mera coincidência ter escolhido a mesma atriz que interpretou a versão projetada de Sofia Coppola nas telas? E não exatamente a atriz, mas a sua voz, para que possamos imaginar o restante, considerando, inclusive, que não vemos qualquer desenho de um corpo, ou algo do gênero, de Samantha? O que nós temos é a voz de Johansonn e a nossa imaginação para fazer o restante.

Theodore e Samantha começam a namorar e tudo na vida do escritor melhora. Decide finalmente assinar os papéis do divórcio e encontrar sua ex-mulher, também uma escritora, nascida em uma família que exige muito dela, que sempre cobra um ideal de perfeição [Como deve ser a vida da filha de Francis Ford Coppola?]. Theodore, interpretado magistralmente por Joaquin Phoenix [Sofia Coppola agora é casada com o vocalista da banda Phoenix... mas acho que aí pode ser apenas coincidência mesmo], descreve ternamente a relação dele com Catherine como uma relação em que os dois amadureceram juntos, que os dois eram muito jovens quando se envolveram e saíram totalmente modificados.

No encontro entre Theodore e Catherine, ele lhe conta que está namorando um sistema operacional, e ela, com os olhos marejados, lhe responde que era bem a cara dele, querer alguém que não fosse real, que não tivesse os problemas de carne e osso. Theo fica arrasado. Sua relação com Samantha esfria porque ele se sente, novamente, culpado, aceitando todas as críticas como se fossem a única verdade possível. Seria ele alguém tão inadaptado ao convívio social? A relação dele com Samantha era real ou virtual? O que ele sente é verdadeiro ou apenas uma imaginação?

"Her" é, provavelmente, o primeiro filme completamente adulto de Jonze [sem qualquer demérito aos anteriores por conta disso]. Um filme que reflete bem as dúvidas e angústias de uma geração de homens que se coloca entre a insensibilidade completa, como a que caracterizaria os nossos pais, e a sensibilidade extrema, que seria ligada apenas ao espectro feminino do jogo, portanto, ligado a nossas mães. Uma geração que está sofrendo para descobrir uma nova forma de masculinidade que não precisa ser necessariamente violenta, ou grosseira, mas que é cobrada para dar ainda segurança e conforto, como mostra o filme de Sofia. Uma geração de homens que quer, ao contrário, também um pouco de segurança e conforto, e quer principalmente uma troca mais igualitária entre os dois lados da relação. Uma geração de homens que pode ser mais "feminina", sem afetar sua masculinidade por isso.

A última cena do filme demonstra para quem o longa é dedicado: Theodore escreve uma carta para Catherine. E diz que para sempre ela vai estar dentro dele. Para sempre ele vai carregar um pouco dela em si. É assim que as melhores relações frutificam.

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